DOSSIÊ
Os administradores do site COXAnautas entrevistaram com exclusividade o Professor Doutor Clifford Stott (foto abaixo), da Escola de Psicologia da Universidade de Liverpool, Inglaterra.
O Doutor Stott é um dos maiores especialistas sobre comportamento e psicologia em eventos de massa, sobretudo os atos de hostilidade e violência, definidos pela mídia como 'hooliganismo' (movimento dos hooligans, como são chamados os torcedores violentos na Europa).
Confira a segunda parte da entrevista exclusiva para os COXAnautas:
COXAnautas: Existe algum fator específico que possa explicar por que a década de 90 ficou caracterizada como a “década negra” do hooliganismo inglês, holandês e alemão?
Dr. Stott: Eu não sabia que esta havia sido a “década negra”. De que maneira ela foi “negra”? Seria por ter sido registrado um maior número de incidentes do que as décadas anteriores? Basicamente, eu creio que existem muitos mitos e argumentos sensacionalistas, no que se refere ao hooliganismo no futebol. Essa má-compreensão é muito negativa.
Penso que devemos nos afastar de termos que se concentram em moralismos, como “década negra”. Nosso trabalho não é propriamente julgar o certo e o errado, mas sim compreender os processos pelos quais a violência se desenvolve. Devemos buscar uma linguagem que nos auxilie a desenvolver uma compreensão precisa do que está acontecendo. Apenas quando entendemos um problema é que podemos encontrar uma solução para ele. Então, vamos identificar o que está acontecendo agora e tentar ignorar aquilo que só podemos entender pelos olhos das “histórias” contadas por outras pessoas – que eu francamente penso que sejam usualmente imprecisas.
COXAnautas: Atualmente, torcedores de Rússia, Croácia, Sérvia, Hungria, República Checa e Polônia, países do Leste Europeu, têm apresentado comportamentos muito violentos. Isso é uma conseqüência de algum fator específico ou apenas um reflexo do maior alcance da mídia hoje em dia, após a queda da ex-União Soviética?
Dr. Stott: Como eu digo, existe uma grande falta de representatividade em torno da violência no futebol, mas não podemos perder de vista o fato de que torcidas de futebol são um ambiente para aqueles que são teoricamente “fracos” ganharem poder e identidade e, por meio disto, lutar contra aquilo que vêem como uma autoridade injusta e ilegítima. Devemos também lembrar que a violência no futebol é uma útil ferramenta política. Se uma sociedade consegue construir a idéia de que esse tipo de violência é um sério problema social, isso pode gerar uma mobilização política que conduza a policiamentos reacionários e legislações que levam à perda de liberdades individuais.
No Reino Unido, a porcentagem de prisões relacionadas ao futebol (o que inclui ofensas violentas e não-violentas) responde por apenas 0,001% do total de pessoas que vão aos estádios. Então, isso significa que o futebol é, na verdade, um dos aspectos menos violentos na sociedade britânica. Isto, é claro, não se coaduna com os mitos nos quais as pessoas acreditam sobre futebol.
Por outro lado, acredito que esses mitos criados pela mídia servem a objetivos políticos e, por isso, sobrevivem mesmo diante de fatos inegáveis (como estatísticas, por exemplo). Também é importante reconhecer que a violência organizada pode ser útil para as próprias organizações políticas e penais – pois se você conseguir recrutar e controlar a violência organizada, poderá utilizar as gangues (ou torcidas organizadas) para desenvolver posteriores projetos políticos e criminais no seio da sociedade. Todos esses aspectos devem ser tratados quando se discute a violência no futebol – concentrar-se em apenas um fator seria mascarar a verdade.
COXAnautas: Na sua opinião, sem vontade política do governo, é possível que apenas os clubes e as torcidas consigam se organizar, no sentido de reduzir a violência?
Dr. Stott: Sim, no meu trabalho na Inglaterra e no País de Gales, uma das coisas que descobri é que, onde clubes e torcidas se preocupam ativamente com o problema da violência, suas ações podem ter um forte impacto. Na verdade, eu diria que é da própria responsabilidade de clubes e torcedores fazê-lo, pois o problema só é solucionado quando as comunidades começam a se auto-policiar.
A responsabilidade da polícia e do governo é criar as circunstâncias onde o auto-policiamento pode se desenvolver. De qualquer modo, sem apoio político do governo, pode acabar sendo muito difícil alcançar esse objetivo, pois obter o apoio de torcedores pode ser muito complicado em situações nas quais a legislação, além de não ajudar, impõe empecilhos.
COXAnautas: Na Itália, rivalidades políticas comumente atingem as torcidas. Quais fatores contribuíram para que isso alcançasse a atual dimensão, gerando violência e discriminação racial, como no caso dos “Irriducibilis”, torcida da Lazio?
Dr. Stott: Só posso especular sobre esse tema. Todos sabemos que existe corrupção no futebol italiano. Existem também artigos que falam sobre a autonomia e o poder que as torcidas têm na Itália. E é provável que exista uma certa relação entre tais artigos. De qualquer forma, eu não respeito qualquer grupo de torcedores que venham a apoiar um líder genocida (nota: o entrevistado se refere a Benito Mussolini, ditador fascista italiano que conduziu o país na II Guerra Mundial e que é venerado pela torcida da Lazio) e só posso esperar que um dia os torcedores italianos, a polícia e os dirigentes façam algo para banir tais grupos.
COXAnautas: As torcidas de Cardiff City, Stroke City e Leeds United têm demonstrado altos índices de violência em estádios britânicos, maiores até que os de torcidas de clubes londrinos. Existe alguma particularidade comum a essas três torcidas que possam levar a tal comportamento violento?
Dr. Stott: Tenho realizado um estudo sobre os torcedores do Cardiff nos últimos dois anos. Os níveis e as causas da violência envolvendo essa torcida são complexos. Mas um dos aspectos é a forma de policiamento pela qual a torcida do Cardiff passa. O que acontece com a torcida do Cardiff é similar ao que acontece com a torcida inglesa, de um modo geral, quando viaja para jogos fora de casa. Essencialmente, a torcida do Cardiff é policiada de uma maneira ostensiva (“high profile”) e pesada, por causa de sua fama de violenta. Mas, como eu expliquei, essas formas de policiamento acabam tendo o efeito de criar condições para o desencadeamento da violência.
Tenho trabalhado com torcedores no próprio clube, visando mudar a forma de policiamento. Se conseguirmos fazer isso, penso que mudaremos a imagem da torcida e o Cardiff não estará mais entre esses times cujas torcidas são tidas como violentas.
COXAnautas: Existem diferenças substanciais entre o comportamento dos torcedores de Inglaterra, País de Gales, Escócia, Irlanda e Irlanda do Norte (países que compõem a Grã-Bretanha)? Pois no Brasil a imprensa geralmente noticia mais incidentes envolvendo torcedores ingleses.
Dr. Stott: Sim, existem diferenças. As torcidas têm tamanhos diferentes, por exemplo. Na Escócia, a violência no futebol está ligada à rivalidade religiosa da Irlanda em relação aos escoceses. Entretanto, não é surpresa saber que a mídia estrangeira tenha uma obsessão com relação à violência dos torcedores ingleses. Mas eu me pergunto: por que isso? Será que isso ajuda a desviar a atenção de falhas governamentais em combater a violência e a corrupção dentro de sua própria sociedade? Por que essa mídia não foca no papel da polícia nesses incidentes? Esse é o tipo de indagação que devemos aventar na próxima vez que ouvirmos algo sobre o “grande problema” dos ingleses e sua “violência” no futebol.
Para conhecer mais sobre o currículo do Dr. Stott e detalhes sobre seus trabalhos, clique aqui.
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