Arquibancada
Pra ser chamado de craque naquela época, o cara tinha que saber tudo de bola. Ele sabia muito, mas não o suficiente para ser chamado de craque. Até teria sido profissional da bola se tivesse levado em conta apenas a vontade de jogar futebol, ou umas poucas qualidades que tinha, mas passava longe de ser craque.
Além do mais, não tinha apoio em casa e muito menos onde tentou a sorte. Em casa seus pais diziam que era melhor estudar.
Driblava bem, tinha raça, mas isso não era suficiente. Queria ser craque e achava que se treinasse mais, um dia chegaria lá.
A geração dele foi uma das últimas de grandes craques produzidos pelo futebol brasileiro. Pelé ainda era o genial em atividade. O interesse pelo futebol passava longe do dinheiro fácil que trás nos dias de hoje, na verdade ele só queira a fama, não pensava em dinheiro. Ainda era uma criança.
Todo time profissional tinha pelo menos dois ou três craques. Todas estas coisas, deixavam tudo mais difícil para ele e outros talentos que surgiram na época.
Também foram os anos que os campinhos de bairro começaram a sumir. Os últimos serviram de palco para a exibição do talento de uma turma que como ele, ocupou a chamada “Chacrinha”, onde hoje está o prédio da Telepar na Jaime Reis,. Também no Cabralzinho, onde hoje estão alguns sobrados, próximo ao Cemitério Municipal, e como o campo do Juventus, que junto com a sociedade do mesmo nome, também sumiu dali, cedendo lugar a um grande mercado, no alto da Vicente Machado.
A principal qualidade dele com a bola no pé era a inteligência. Antevia a jogada. Pensava na frente dos outros. Sabia o que devia fazer, e principalmente o que pretendia o adversário.
Se inspirou no Gerson, meia da Seleção tricampeão de 70. Viu Gerson jogar poucas vezes mas aproveitou todas elas. Parecia ter uma câmera zoom nos olhos para armazenar em detalhes os primorosos lançamentos que Gerson fazia.Tentava imitar o canhotinha em tudo. De tanto ver, acabou conseguindo precisão nos passes. Ele era mesmo bom naquilo.
Foi fazer teste no clube de futebol do seu coração, esperou alguns dias para ser chamado. Nos primeiros dias não passou do banco. Quando finalmente é chamado, o treinador aponta pra ele dizendo- “entra lá no lugar do 9”. Não reclamou. O time adversário era montado com os titulares do clube e por isso, protegidos pelo treinador. Entrou de centroavante no time reserva, posição que tinha pouca familiaridade. Não sabia jogar de costas para o gol. O negócio dele era vir com a bola dominada e achar alguém para o lançamento. Mas sabia que aquela era a grande oportunidade de mostrar o que sabia de bola.
Cinco minutos em campo e nada da bola chegar nele. Teve a grande ideia de chegar no cara que fazia o meio -o 10 do time, e disse: “o treinador mandou você trocar de posição comigo. Vai pra frente”! O cara foi. Finalmente estava na posição que queria, fazendo o meio de campo. Quando a estratégia parecia funcionar, o treinador apita parando o treino, entra em campo... dá três passos além da linha lateral e adverte os dois. – “Não quero que troquem de posição, façam o que mando”. Além da advertência do treinador, leva uma bronca também do companheiro que não gostou de ter sido enganado.
Com mais uns cinco minutos em campo, a bola finalmente chega nele. Ela veio por cima, numa sobra disputada na lateral esquerda. Antes da bola chegar, ele percebe o zagueiro se antecipando na marcação. O cara era grande. Lembrou um zagueiro polaco grandalhão, que uma vez ele viu jogando por um time da Barreirinha. Como não tinha altura e nem impulsão, fica no meio do caminho e nem vê a jogada ser finalizada pelo zagueiro.Quando percebe, a bola já estava no meio de campo, voltando pra defesa do time dele. O zagueiro cola nele e chega dizendo: “aqui não tem pra ninguém”. A frase soou como provocação.
Sabia que uma chance como aquela não apareceria tão cedo, pensou que a próxima oportunidade seria decisiva, não podia perder.
Antes da segunda chance, o treinador tira ele pra colocar outro menino em seu lugar. Diz para voltar no dia seguinte. Pelo menos não tinha sido dispensado, como acontecia com muitos – pensou.
Dia seguinte, logo depois do almoço, sai de casa, segue até o ponto de ônibus, na praça do Homem Nú e entra no primeiro Marechal Hermes que passa. Desce um ponto antes e vai até o campo da Sociedade Ahú, onde enfrentaria mais um dia de teste. Estava nervoso. Desceu antes para caminhar e tentar se acalmar.
Foi chamado pelo treinador da mesma forma para entrar na mesma posição do dia anterior.
Lá estava ele de novo de centroavante e logo na primeira disputa o mesmo zagueiro do dia que tinha lhe provocado lhe acerta uma cotovelada na boca. Doeu mais na alma. A primeira coisa que pensa é no revide. A segunda bola que chegou nele foi a oportunidade de devolver a cotovelada. Subiu com os dois pés na coxa do zagueiro. O zagueiro sai de campo carregado e, ele expulso pelo treinador, que pediu que não voltasse mais. Saindo de campo ainda vê a marca das travas da sua chuteira na coxa do adversário.
Decide encerrar a carreira de testes nos clubes. Ainda restavam outros times para se oferecer, mas eram menores. Ele queria ser aceito em clube grande, de preferência no time dele, o Coritiba. Achava que estava perto de ser um craque e tudo era uma questão de oportunidade.
Poucos meses foram suficientes para esquecer tudo e recomeçar as andanças pelos clubes. Decidiu encarar um clube menor. Fez testes em dois e foi aprovado em ambos. Num deles fez até gol, jogando de ponta direita.
Por uns dias ainda se manteve nos dois até escolher em qual ficaria.
Escolha feita. Ficou com o Pinheiros. Chegou a jogar duas partidas oficiais pelo campeonato paranaense juvenil. A segunda e última, foi contra o time grande, o time dele, o time do coração onde queria ser chamado- o Coritiba. O time do zagueiro que tinha lhe acertado a boca com cotovelo e, ele devolvido com o lance maldoso entrando com a trava da chuteira na coxa do menino.
O reencontro não seria esquecido pelos dois. Antes da partida eles se reconhecem. Só que naquele dia ele estava jogando na posição que sabia. Era meia e jogou o seu melhor. Deu passe para dois gols na vitória de três a dois. A primeira vitória em anos de história nos confrontos entre os dois clubes naquela categoria. Depois do passe para o segundo gol, enfiou na cabeça que tinha que humilhar o zagueiro, mas desta vez tinha que ser na bola.
Na primeira oportunidade fez o drible e passa ao companheiro mais próximo. A jogada termina em gol. O drible que deu foi desconcertante e deixa o zagueiro sentado no gramado. Na volta passa perguntando debochadamente – “você está bem”?
Termina a partida. Ele sabia que tinha ido bem. Sem nenhum deslize e, desta vez sem aceitar as provocações do adversário.
Sem dúvida foi o principal responsável pela vitória. Sai de campo de cabeça erguida, orgulhoso dele mesmo. Nem os pontapés do zagueiro (que foi expulso numa jogada violenta em cima dele), lhe tiraram a concentração.
Quase na boca do vestiário, o treinador adversário que tinha lhe dispensado meses antes, oferece nova oportunidade. Fez o convite para voltar a fazer novo teste. Era a grande oportunidade de finalmente jogar no time do seu sonho, o Coritiba.
Os dois se olharam por alguns segundos...
Ele não responde, dá um meio sorriso, entra no vestiário para nunca mais voltar a tentar a carreira de jogador de futebol.
Preferiu deixar na memória o prazer que sentiu com sua proeza daquele dia, um dia de craque.
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