Bola de Couro
Continuando no enfrentamento dos benefícios com que o Estado do Paraná e o Município de Curitiba favorecem ao CAP, e não sem antes renovar pedido de escusas se estiver cansando aos amigos leitores, para os quais a análise do desempenho da equipe talvez fosse mais interessante, registro que lanço as considerações na esperança de que sirvam pelo menos para despertar a consciência do exercício da indignação cidadã. Hoje manifestarei o que penso sobre as desapropriações e, se sentir que o tema está interessando aos amigos Coxanautas, na próxima coluna enfrentarei o tema do “potencial construtivo”.
As desapropriações, em nosso sistema constitucional, só podem ocorrer por dois motivos: utilidade pública ou interesse social. Este último não vem ao caso, uma vez que se refere à reforma agrária e é de competência da União Federal. O primeiro fundamento, utilidade pública, é de caracterização ampla, mas em todas as hipóteses diz respeito com a necessidade da realização de obras “públicas” para o bem ou uso da coletividade.
Em relação às desapropriações por interesse público o assunto é regrado pelo Decreto-lei nº 3.365/1941, invocado como fundamento do Decreto Municipal nº 1.957/2001 que desapropriou os imóveis em favor do CAP, o qual prevê dezesseis casos que se consideram como de “interesse público” para o efeito de desapropriações como, por exemplo, salubridade pública, o funcionamento dos meios de transporte coletivo, etc. É certo que uma das hipóteses, a da letra “n” do mesmo dispositivo legal fala em “a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves”. Mas por favor, que ninguém venha dizer que a expressão “estádios”, serviria de fundamento para as desapropriações do caso em exame, uma vez que é evidente que, em se tratando de utilidade pública – e se referindo todas as outras hipóteses da mesma lei a coisas públicas - a alusão sem dúvida é a “estádios públicos”, jamais a privados, pois interpretação contrária feriria de morte os princípios da impessoalidade e moralidade.
Os que se derem ao trabalho de ler o dispositivo legal citado – que não reproduzo por muito extenso – concluirão com firmeza que a reforma ou reconstrução ou ampliação do estádio Joaquim Américo Guimarães, de propriedade privada do Clube Atlético Paranaense, não se enquadra em nenhuma das hipóteses exaustivas do texto legal.
Houve tentativa de caracterizar o ato como de interesse público através do artigo 2º, da malsinada Lei Estadual do Paraná nº 16.733/2010: “Consideram-se de interesse público e coletivo aqueles relacionados à realização do referido evento no Estado do Paraná, incluindo obras de infra-estrutura(sic), viárias, de melhoria, de ampliação e reforma do estádio do evento indicado pelo Estado e aprovado pela FIFA, e outras reformas e adequações julgadas necessárias.”, mas mesmo assim constando em lei o conceito não se sustenta minimamente.
Há interesse público e coletivo – da sociedade curitibana e paranaense como um todo - em ver melhorado, ampliado e reformado o estádio do Clube Atlético Paranaense (para dar aparência de impessoalidade a lei não refere o nome do clube, embora muito antes já se soubesse qual seria)? A realização de cinco jogos entre seleções estrangeiras de quilate médio ou menor durante um mês em Curitiba justificaria tamanho benefício público a uma entidade privada? Os cidadãos poderão usufruir do empreendimento tal como usufruiriam de uma obra pública? E quem decidirá sobre as “outras reformas e adequações julgadas necessárias”? O clube? Talvez daí a cobertura retrátil?
Evidente, pois, a violação ao princípio constitucional da impessoalidade, não fosse também o da moralidade que em vários aspectos aqui foram indicados.
Em relação ao relato que fiz na primeira coluna, no condicional, sobre afirmação do vereador Pedro Paulo no sentido de que parte dos imóveis desapropriados pertenceriam ao Exército Nacional, ou seja, seriam da União Federal, nos comentários àquele texto o Coxanauta Gustavo Barbosa esclareceu que não ocorreu desapropriação de tais bens, mas sim o Município de Curitiba ofereceu outro ou outros imóveis em permuta ao comando da 5ª Região Militar. Se assim é, pelo menos nesse sentido se afasta ilegalidade, pois o Município jamais poderia desapropriar bens da União. Mas persiste, sem dúvida, o favorecimento ao particular com a entrega de bens públicos.
Por outro lado, e aqui o campo é um pouco mais árido para os amigos não versados no Direito, e perdoem-me se não souber ser didático.
Ocorre que a mesma lei antes citada, em seu artigo 9º, veda ao Poder Judiciário decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública, ou seja, em princípio a Justiça não poderia dizer se o Município de Curitiba agiu ou não com base em necessidade por utilidade pública ao realizar as desapropriações.
Mas felizmente há muito não é assim quando ocorre “desvio de finalidade”, ainda mais quando este já é anunciado anteriormente, como no caso. Por “desvio de finalidade” se deve entender o ato do administrador que, depois de desapropriado um bem por utilidade pública dá-lhe outra finalidade que não a do bem comum, e pior ainda quando o faz com ânimo predeterminado de aparentar estar a desapropriar um bem para destinação pública, mas na verdade o faz com intenção de concedê-lo ao patrimônio exclusivo de particular. Nesta hipótese, o Poder Judiciário não só pode como tem o dever de declarar a nulidade do ato ilegal e imoral. Neste sentido é ampla a doutrina e a jurisprudência na interpretação da restrição daquele artigo 9º.
Além do mais, o Decreto-lei nº 3.365/1941 foi editado em período de exceção constitucional, dentro do chamado “Estado Novo”, e seu artigo 9º não sendo recepcionado pela atual Constituição Federal em face do princípio no sentido de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito“ (Constituição Federal, artigo 5º, XXXV).
No caso, então, se a tanto chamado o Poder Judiciário não analisaria propriamente a fundamentação de utilidade pública, mas sim o artifício legal utilizado e, pior, previamente anunciado para o desvio de finalidade visando à concessão da propriedade a um particular. Se é ilegal e imoral desapropriar um bem a título de utilidade pública e depois decidir por outro uso que não seja público, o que dizer do mesmo proceder já anunciando antes a finalidade privada? Os princípios constitucionais da impessoalidade e moralidade se sobrepõem à norma legal comum e o Poder Judiciário pode desconstituir aquele ato se para tal provocado.
Enfim, qualquer que seja o fundamento da desapropriação, os bens por ela atingidos devem obrigatoriamente se incorporar ao patrimônio “público”, de acordo com a primeira parte do artigo 35, do Decreto-lei nº 3.365/41. Deste modo, transferi-los para o Clube Atlético Paranaense conforme prevê o Decreto Municipal nº 1.957/2011, é ato que caracteriza improbidade administrativa por dar o administrador municipal margem à “perda patrimonial” a que alude o artigo 10, da lei nº 8.429/92, por facilitar ou concorrer, conforme o inciso I, do mesmo dispositivo, “para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei”. O fato de o mesmo decreto curitibano candidamente afirmar que a doação “deverá obedecer os (sic) requisitos legais, através de procedimento próprio que não represente prejuízo ao Município.” não destipifica a infração administrativa, pois nem sequer de compensação ou pagamento fala o diploma municipal em questão.
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