Confabolando
Curioso, temos memória seletiva. Queria me recordar mais, mas não tenho grandes lembranças de minha infância. Tenho algumas aleatórias, outras perdidas que volta e meia são encontradas e outras esquecidas mesmo.
Mas tenho claras algumas lembranças curiosas. Uma delas, da primeira vez que vi um João de Barro, ou melhor, a casa de um João de Barro. Enquanto dona Ieda, minha gloriosa mãe me explicava aquele fantástico fenômeno da natureza, eu ficava bestificado com a capacidade do passarinho.
Uma outra bem próxima que tenho é de uma ida ao médico. Tinha por volta de cinco anos de idade. Naquela época eu aprendia a gostar de futebol pela TV. Estava deixando de ser "apenas uma brincadeira". Via um VT de um atleTiba e perguntei ao meu pai: "Mas se a rivalidade é tão grande, por que os uniformes são tão parecidos?" Meu pai me respondeu em tom de curiosidade: "Como assim filho? São bem diferentes" (Nota: Naquela época o uniforme "deles" ainda era diferente, com listras na horizontal, bem como o escudo que também lembrava o do Flamengo). Eu respondi que ambos tinham o verde em comum, embora tivessem como cores complementares o branco e o preto, por ordem de importância.
Diante desta situação, fui pela primeira vez parar em um consultório oftamológico. Meu pai estava preocupado: "Aristóteles (nome do médico, amigo de meu pai), esse guri pelo jeito não enxerga vermelho". Exames e mais exames, nada foi descoberto. Meu pai então veio para Curitiba e me trouxe à oftalmologista de grande capacidade técnica, Irís Clara Benvista. Ela tentou de tudo e nada encontrou. Ao estudar profundamente o caso, que depois se transformaria em tese de mestrado ela descobriu: "Esse menino sofre de daltonismo voluntário".
Benvista explicou ao meu pai que meu cérebro era capaz de captar e distinguir uma cor de outra, mas que inconscientemente ele não me deixava ver o vermelho. Aquilo era um sinal, segundo ela, de que as orientações dadas pelo meu pai a mim foram de grande valia, já que a distinta médica também era Coxa-Branca. Por este mesmo motivo, segundo ela, o meu cérebro captava as informações e repassavas como se fossem todas verdes, mas mandava um alerta do que era vermelho na hora em que eu fosse escolher uma cor para qualquer situação relacionada a mim. Assim funciona o daltonismo voluntário.
Já que estavamos em Curitiba, saímos do consultório da oftalmologista, passamos em frente ao Monumental e compramos uma camisa do Coxa para mim.
A história é interessante, meia-verdade e trata-se de um "Passarinho". Não igual ao João de Barro, da primeira lembrança, mas uma expressão metafórica.
Esta figura de linguagem foi introduzida pelo brilhante Nelson Rodrigues e a história é contada por Mário Prata em uma crônica que transcrevo a seguir:
“Éramos três do Estadão lá em Paris, sem contar o meu querido Reali Jr: o Chico Buarque, o Mateus Shirts e eu. Os três, cronicando. Para evitar que a gente escrevesse a mesma coisa, driblasse o mesmo tema, trocávamos fax (o compositor é contra e-mail).
No primeiro sábado, antes de sair a primeira dominical do Chico, chega o fax: "Com Os Meus Botões". Um poema, como me diria depois o flamenguista Aluizio Maranhão, nosso redator-chefe. Realmente um poema. Em Paris, entre os colegas jornalistas, não se falava noutra coisa.
Leio orgulhoso. Afinal, fui eu quem convenceu o poeta a escrever crônicas na copa. Tinha certeza que ia dar samba. A crônica falava dos times de botão do Chico e dos que todos nós tínhamos nos anos 50 e 60, pedaços de plásticos concentrados dentro de uma caixa de catupiri, com direito a talco e flanelinha. E todos botões tinham nome, é claro. Mas tinha um pedaço na crônica:
"Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão".
Muito bonito. Só que eu gritei:
- Passarinho! Isso é passarinho do Chico!
- O quê queé passarinho? me perguntou o Mateus abrindo uma garrafa de uísque com os dentes.
- O dedão na clavícula é passarinho!!!
Deixa eu explicar o que é um passarinho. Em 54, o Nelson Rodrigues escreveu uma crônica dizendo que a imprensa estava muito chata por falta de passarinhos. E explicava que antigamente era diferente. Que hoje (54) não se mentia mais. Uma vez houve um incêndio na Lapa, mandaram um repórter para lá e reservaram a primeira página. O repórter voltou desanimado: apagaram o incêndio com um regador de jardim. Mas não aconteceu nada que dê notícias? Bem, disse o repórter, tinha um passarinho dentro de uma gaiola muito nervoso. Foi o bastante: "Fogo Ameaça Fauna na Lapa".
Era isso: o Nelson estava dizendo que os jornalistas brasileiros não mais aumentavam a notícia, não criavam nenhum passarinho. E nas nossas conversas intercronistas a palavra passarinho é muito corriqueira. Eu, por exemplo, me considero um passarinheiro de marca maior.
Então, pra mim, o dedão na clavícula do Formiga era passarinho. Estava na cara que era. Basta conhecer um pouquinho o Chico. Aliás, um bom, um excelente passarinho. Mas, passarinho.
Passo um fax para a casa do Chico. Não deu dois minutos, toca o telefone. Era ele. Indignado. Não fala oi, nem nada. Raivoso, atacando e se defendendo ao mesmo tempo, parecia a seleção da Nigéria em seus desengonçados momentos de glória. Ele estava mesmo bravo comigo:
- O dedão na clavícula é passarinho? O dedão na clavícula do Formiga é passarinho?
Nunca tinha visto o cara assim. Dei até um passo atrás lá no meu quarto. Fiquei sem jeito. Achei que eu tinha pegado pesado com ele. Afinal, a primeira crônica dele e eu dizendo que o dedão na clavícula era passarinho? Mas fiquei na minha:
- Desculpa lá, mas é. Você vai me desculpar muito, tá tudo muito bom, muito bonito mesmo, um poema e não sei mais o que. Até você ficar sem palavras olhando para a cara do Formiga, tudo bem. Colocar a mão no ombro, tudo bem. Mas jogar botão com a clavícula do Formiga, pra mim é passarinho. Um excelente passarinho, diga-se de passagem.
- Você acha mesmo que o dedão na clavícula do Formiga é passarinho?
Eu achava mesmo:
- Acho!
Ele abre uma risada contagiante e mal consegue dizer, triunfal:
- Cara, eu nunca vi o Formiga na minha vida!!!”
Passarinhos bem contados e sem objetivos maldosos, sempre são bem-vindos. Que o diga o Rafael Lemos, meu amigo da Secretaria. O maior dos passarinheiros que plaina sobre aquelas terras baixas.
Daltonismo voluntário é para quem pode, não para quem quer.
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