Falando de Bola
A temporada não anda nada boa para o Cantareira. A torcida já não agüenta mais os sucessivos fracassos do time.
Dentro de campo o time não rende. No campeonato regional duas derrotas para o maior rival nas finais. O fracasso faz a torcida pedir a cabeça do técnico.
Fora de campo, a diretoria anda perdida. Contratou jogadores no atacado, mas só o goleiro se salvou. A maioria deles veteranos, dispensados pelos seus times ou não aproveitados. Para a diretoria, o técnico é o menos culpado, afinal os jogadores o apoiam publicamente. Mantendo o treinador, a diretoria veste a carapuça de maior culpada pelo fracasso do time.
O discurso era que o campeonato regional era apenas um teste para o nacional. Este sim um torneio que é muito importante.
No regional, o único fato positivo foi confirmação de uma revelação da base, o garoto Kelvin Junior, de 18 anos. Meia habilidoso que joga de cabeça erguida, de bom drible e chute certeiro. Os sete gols marcados nas doze partidas que disputou pelo time principal do Cantareira já fazem o garoto ser apontado pela imprensa como o novo craque das cercanias.
O clube trata Kelvin Junior como joia. Um bom campeonato nacional e logo a Europa é o destino. Esse sonho é compartilhado de forma Tripartite: o jogador, o seu empresário e o clube que o revelou.
A primeira medida é aumentar o salário do garoto. De uma ajuda de custo de 500 reais, seu salário da noite para o dia pula para 30 mil reais. Assim, a multa rescisória vai lá para as alturas.
Após se destacar no estadual, Kelvin Junior passa a ser a maior mercadoria do clube e de seu empresário, que enxergam no garoto, a grande possibilidade de faturar alto.
Com o bolso cheio de dinheiro, um carrão importado e morando em um bom apartamento alugado pelo clube, a vida de Kelvin Junior não parece mais a mesma.
Vindo de uma família pobre, de pais separados e mais sete irmãos, a sua mãe trabalhava como diarista para poder sustentar os oito filhos. O pai alcoólatra sumiu quando o garoto tinha 8 anos de idade. A comida era escassa. Televisão, só quando via no vizinho ou nos bares da região. Ao ver os grandes craques do país na telinha, o sonho de Kelvin Junior era um dia poder estar estrelando as telas de televisão.
O sucesso de Kelvin Junior era a grande esperança também de sua família. Com o aumento salarial, sua mãe e seus irmãos passaram a ter uma vida melhor. A mãe sempre o orientava para que não de deixasse deslumbrar pelo novo momento e que sempre se lembrasse do seu passado recente de dificuldade.
O Cantareira tratava o garoto como uma jóia preciosa. A torcida o adorava, encantada com seu futebol. E seu empresário, crescia o olho com a possibilidade de uma futura negociação.
O garoto começou muito bem sua participação em sua primeira competição nacional. Logo no primeiro jogo, marcou o gol da vitória, com um belo chute de fora da área.
O Cantareira, um time médio do futebol brasileiro, chamava a atenção pelos bons jogos, e Kelvin Junior se destacava com gols e assistências.
Não demorou muito para que grandes clubes do país começassem a prestar mais atenção no franzino, apenas no tamanho meia, mas de futebol gigante. O seu empresário era constantemente procurado. As ofertas eram milionárias. Estava ali a grande chance do garoto em arrumar de vez a vida de sua família, e de seu empresário enriquecer.
Todo dia chegavam propostas para Kelvin Junior. Seu empresário passou a estar praticamente 24 horas por dia com o jogador. Os dois não largavam as conversas pelo celular.
As propostas de Santagalo e Apoema, os dois maiores clubes do país, mexeram com o jogador. A grande dúvida de Kelvin Junior, de 18 anos, era para onde iria. Se optaria pelo Santagalo, que tinha a maior torcida, porém passava por um momento difícil, ou então para o Apoema, o clube da moda no país.
O garoto já não conseguia pensar em outra coisa. Seu rendimento nos jogos caiu. O meia parecia desinteressado. Nos treinos já não se esforçava mais.
Com seu principal jogador em má fase, o Cantareira foi caindo na tabela até chegar a zona do rebaixamento. Muito ruim para um time que chegou a frequentar a parte de cima da tabela.
A torcida que estava encantada com o garoto perdeu a paciência. A cada erro de Kelvin Junior, vaias e mais vaias. O novo treinador colocou o garoto no banco. Mas na primeira partida em que entrou, marcou o gol da vitória no último minuto e saiu batendo no peito dizendo que era o “cara”. Para a torcida, Kevin Junior soltou diversos palavrões na hora do gol.
No dia da representação do time, Kelvin Junior apareceu com seu empresário. Enquanto todos subiam para o treino, o garoto foi direto para a sala do diretor de futebol. A conversa foi rápida e nela a revelação: Seu empresário disse que o jogador estava desmotivado e exigia sua saída para o Apoema, o clube da moda e mais rico do país.
Assim, no último dia da janela de transferências, o Cantareira ficava sem seu principal jogador. Em troca, alguns reais e mais três jogadores, que estavam encostados, por empréstimo.
A saída para o Apoema era a glória para Kelvin Junior. Vestir camisa de um grande clube era tudo que sonhava aquele garoto, que chegou a passar fome na infância. Carro importado, apartamento cobertura, restaurantes caros, mulheres, jóias, roupas de grife, agora faziam parte de sua rotina.
Dentro de campo, um começo avassalador. Cinco gols em três partidas. O técnico da seleção nacional começou a observar o garoto.
Mas foi a partir daí que Kelvin Junior se perdeu. A fama repentina subiu como um foguete à cabeça do jogador.
Os “amigos” não desgrudavam dele. Cada dia uma festa diferente. Mulheres, muita bebida e em algumas até droga era oferecida.
As baladas diárias cobraram um preço alto. Mesmo com apenas 19 anos recém completados o físico já sentia o cansaço das noites mal dormidas. Como dinheiro não era problema para o garoto que agora tinha um salário de 200 mil reais, Kelvin Junior já não se importava mais nem quanto gastava com suas saídas diárias.
Para a exigente mãe sempre dizia que estava tudo bem e que ela não precisava se preocupar com suas saídas, afinal era jovem e rico.
Seu empresário com o bolso cheio da transferência para o Apoema, não se preocupava mais com o estado atual do garoto, pensando apenas em uma transferência para o exterior.
Kelvin Junior chegava cada vez mais atrasado aos treinos. Em alguns era facilmente perceptível o cheiro de bebida. Seu treinador, ex-jogador, era matreiro e logo percebeu que o garoto tinha se perdido. Dentro de campo já não rendia mais e logo a torcida começou a pegar em seu pé. O treinador tentou aconselha-lo, mas o jogador já não dava mais ouvidos.
O campeonato acabou com o Apoema na parte intermediária da tabela. Kelvin Junior já não tinha mais moral no clube, mas ainda assim era tratado como uma jóia, afinal o clube tinha investido nele e queria recuperar o investimento.
Nas férias de final de ano, a única coisa que Kelvin Junior queria saber era aproveitar a vida. Baladas, bebedeiras, drogas, mulheres faziam parte da rotina do jogador.
Ao se apresentar ao clube para a pré-temporada, a diretoria percebeu o péssimo estado físico que o jogador de apresentara. Seu treinador com a rigidez que lhe era comum, afastou o jogador, colocando-o em disponibilidade.
Seu empresário, furioso, foi até o clube e disse que seu cliente não jogaria mais no Apoema. Ofereceu o jogador para vários clubes, que sem conhecer o estado atual de Kelvin Junior se assanhavam com a possibilidade de contar com a jovem promessa.
Não demorou para que o jogador acertasse com o Promissão, outro time grande do futebol nacional. O time pagaria metade do seu salário e teria em seu elenco uma grande promessa.
A torcida do Promissão ficou eufórica, mas a rotina desregrada de Kelvin Junior mostrava o reflexo dentro de campo. Atuações apagadas, discussões com companheiros, com o treinador, e na metade da temporada o jogador foi colocado para treinar em separado.
A realidade começava a se mostrar dura para Kelvin Junior, mas o jogador que ainda tinha mais dois anos de contrato com o Apoema, não aceitava que precisava de ajuda.
Kelvin Junior passou o restante do ano treinando em separado no Promissão, e aproveitava o tempo livre para continuar sua rotina de baladas e bebidas.
Seu empresário finalmente tinha percebido que o jogador estava em um caminho sem volta e aconselhou o meia para que ele se esforçasse em seu retorno ao Apoema.
Na temporada seguinte, Kelvin Junior se esforçou na pré-temporada. O Departamento de Fisiologia do clube fez de tudo para colocar a promessa em forma.
Nas primeiras partidas, o jogador ficou no banco, mas na primeira chance que recebeu, entrou e empatou uma partida que estava praticamente perdida.
Logo os holofotes todos se voltaram para o atleta. A imprensa voltou a exaltá-lo e a torcida dizia que o craque voltou.
Mas a cabeça de Kelvin Junior era fraca, apesar dos ensinamentos de sua mãe. Com a volta da fama, vieram também as baladas, bebidas e as mulheres.
Antes da metade da temporada já não era mais nem relacionado pelo seu treinador. Voltou a treinar em separado, com a alegação de que sua permanência no elenco principal não era benéfica para o grupo de jogadores.
Seu empresário antigo o tinha abandonado por perceber que sua joia tinha se perdido na carreira.
O novo só pensava no quanto conseguiria financeiramente com seu novo cliente.
Os abusos de Kelvin Junior eram cada vez mais conhecidos por todos. Seu empresário batia de porta em porta oferecendo o jogador. Mas a cada porta batida, a resposta era sempre a mesma: Não temos interesse!
Kelvin Junior passou o restante da temporada sem entrar em um jogo oficial. Participava apenas de coletivos com a equipe Sub-20. Com o estado físico precário, a notável habilidade que tinha já não existia mais.
Na temporada seguinte o Apoema propôs uma rescisão contratual. Como ainda tinha um ano de contrato, o valor que receberia pela rescisão o fez aceitar a proposta. Como tinha várias dividas, aquela era a chance de pagar o que devia e recomeçar.
Livre para negociar, o seu empresário voltou a bater a porta de vários clubes. Mas a resposta era sempre não. Nenhum clube queria mais apostar no jogador.
Assim, Kelvin Junior voltou para sua cidade natal, a terra do Cantareira. As rotinas de baladas já não eram mais as mesmas, afinal o dinheiro estava curto. Os vários amigos já não apareciam mais.
Mais um dia um velho amigo apareceu. Sebastião Macena, conselheiro do Cantareira, que tantou ajudou aquele moleque pobre e franzino, dando-lhe carona para os treinador e pagando-lhe as refeições quando Kelvin Junior era apenas uma promessa, o encontrou correndo em um parque da cidade.
Um fraterno abraço e um papo rápido e dez dias depois Kelvin Junior assinava um contrato de risco com o Cantareira por um ano.
Era a grande chance do jogador. A torcida se dividia, alguns animados e outros ressabiados com o retorno do craque revelado no clube.
Mas dentro de campo as coisas não saíram como todos esperavam. Os anos de esbórnia impactaram diretamente no físico do jogador. O raciocínio rápido agora estava lento, e assim nem a grande habilidade fazia mais diferença.
A temporada foi um fracasso. Apenas vinte jogos, dez como reserva, e dois gols marcados. Fora de campo, Kelvin Junior tinha se perdido novamente.
O Cantareira dispensou o jogador, que conseguiu um novo clube, o Tradição, clube da segunda divisão nacional. O clube tinha uma dívida com o empresário do jogador, que como percebia que não receberia o dinheiro, colocou seu atleta lá, em troca de 70% de seu salário.
Mas Kelvin Junior também não deu certo lá. Até começou bem, como em outras oportunidades, mas a falta de cabeça sempre atrapalhava o jogador, que cometia os mesmos erros. Mais uma temporada e mais uma dispensa.
Seu empresário desistiu. Até tentou outros clubes. Kelvin foi parar em um clube da quarta divisão, mas a falta de estrutura desmotivaram o jogador, que não durou cinco jogos.
Hoje, aos 25 anos, Kelvin Junior trabalha como auxiliar de serviços gerais em uma transportadora. Nos finais de semana complementa sua renda atuando como meia do Torrentes, clube da suburbana de sua cidade.
Sua mãe sempre dizia para que ele tivesse em sua cabeça a mesma inteligência que tinha com a bola em seus pés. Mas infelizmente, Kelvin Junior preferiu seguir outros conselhos.
A história acima trata-se apenas de uma obra de ficção.
Ricardo Honório
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