LITERATURA
Série "Os Títulos que eu vi"
CAMPEONATO PARANAENSE DE 1979
Quem disse que as bruxas não existem?
Por Gilson de Paula
Para aqueles que, como eu, gostam de um bafafá, de uma ziquizira, de um fuzuê danado, o Campeonato Paranaense de 1979 foi um prato cheio (está aí outra coisa que eu também adoro). Quase toda vez que o famoso Colorado entrou em campo naquele Estadual teve chiadeira e confusão.E o pior é que o time deles vinha embalado e tinha tudo para conquistar o título. O detalhe é que eles não contavam com a minha astúcia. Antes de contar o que aconteceu, deixa eu me apresentar: meu nome é Jorge Antônio Pereira de Paula, mas só porque eu tenho um chulé desgraçado, uns engraçadinhos aí me chamam de “Cheiroso”. Eles descobriram esse meu problema quando eu tirava meu Kichute, após as peladas no campinho a duas quadras de casa, nas manhãs de domingo.Então acabei me acostumando e vocês também já podem se referir à minha pessoa me chamando de “Cheiroso”.Como esse parágrafo já ficou grande demais, vamos passar para o próximo. Sigam-me os bons!
O Paranaense de 1979 foi disputado por nada menos que 18 clubes, um número recorde e absurdo.A Federação Paranaense de Futebol estava para inaugurar sua sede nova, no Tarumã, e precisava fazer média com seus filiados. Seriam dois turnos classificatórios, um octogonal e um quadrangular final para se chegar ao grande campeão.O Colorado, que tinha em seu elenco jogadores como Jorge Nobre, Gassem, Caxias, Tião Marçal, Ari Marques e Buião, entre outros, veio atropelando todo mundo nos dois turnos da competição.
O Boca Negra fazia a festa em cima dos adversários e vira e mexe e aparecia um árbitro levando bordoada de torcedor revoltado.Enquanto estava só na base do catiripapo, tudo era diversão. Mas no dia 29 de julho, a coisa ficou mais séria e o que era divertido de se ver acabou transformando-se em uma grande tragédia. O jogo era entre Toledo e Colorado (pra variar, tinha que ter o Colorado no meio). O árbitro da partida era um tal de Tito não sei das quantas. Devido a uma atuação que revoltou a torcida local, houve um bafafá desgraçado e, no meio do sururu, um policial acabou matando um torcedor de apenas 19 anos. Ainda teve um outro coitado lá que ficou ferido e quase morreu também. Lembro que o árbitro teve que dar no pé sem tomar banho para não levar um cacete da galera revoltada. Além disso, aquele campeonato teve bandeirinha levando pedrada de torcedor; teve árbitro batendo em jogador; teve dirigente do Colorado sofrendo enfarto e falecendo após uma vitória sobre o meu Coritiba, enfim, foi uma desgraça atrás da outra. Só faltava o Colorado ser campeão para fechar a tragédia com chave de ouro.Mas isso eu não iria permitir jamais.
A história do Campeonato Paranaense de 1979 começou a mudar quando, num dia chuvoso, eu conheci a Inez, uma mulher que não chegava a ser assim uma Kate Lira, uma Silvia Bandeira, mas até que não era de toda ruim.E como eu não estava pegando nada há muito tempo, tive que me contentar com aquela lazarenta mesmo. Na verdade, o que estragava a cara da infeliz era uma verruga enorme situada bem ao lado do nariz e um tic nervoso pra lá de irritante (ela piscava e puxava o rosto pra esquerda o tempo todo). Resumindo: ela parecia aquela bruxa que deu a maçã à Branca de Neve naquele famoso conto infantil de Walt Disney. Estávamos no ônibus que fazia o trajeto Centro-Vila Hauer quando, sem querer, esbarrei em Inez e, ao pedir desculpas, acabei sorrindo para ela. Ela também sorriu e todos à nossa volta perceberam que pintou um clima de romance no ar.Nunca vou esquecer que, assim que trocamos nossos primeiros olhares, começou a tocar “Easy”, dos Comodores, no rádio do ônibus.Quase chorei.Naquele instante, descobri o verdadeiro sentido da frase “quem ama o feio, bonito lhe parece”.
Por causa da Inez, desci uns sete pontos antes e tive que andar uns dois quilômetros a pé para chegar em casa e, antes disso, tive que carregar sacolas cheias de repolho e outras verduras e frutas, já que um verdadeiro cavalheiro não deixa uma dama carregar nada. Chegamos em frente à casa dela, entreguei-lhe as sacolas e, ao me despedir, arrisquei:
- O que você acha de sairmos para tomar uma cerveja no Bar do Pedro, qualquer dia ou noite dessas? (Bar do Pedro era onde eu tinha conta)
Ela apenas baixou a cabeça, sorrindo, e respondeu:
- Seria uma honra.
Pronto. Eu estava apaixonado. Na primeira sexta-feira depois disso eu emprestei um Fusca 1971 do meu irmão e fui até a casa da Inez para levá-la ao Bar do Pedro. Cerveja vai, cerveja vem e aconteceu nosso primeiro beijo.O amor é lindo...
No dia 19 de agosto, o Coritiba iria enfrentar o Colorado pelo octogonal que dava as quatro vagas ao quadrangular que iria decidir o título.Convidei minha amada para ir comigo à Vila Capanema e ela, mesmo sem entender porra nenhuma de futebol, aceitou. O destino do Estadual mudaria naquele dia.
O Colorado jogou melhor que o meu Verdão, venceu por 2x0 e deixou claro que era o grande favorito para ficar com o título daquele ano.Como desgraça pouca é bobagem, ainda roubaram minha bandeira quando eu estava saindo daquilo que eles chamavam de estádio de futebol.Uma tarde para ser esquecida, lamentada. Inez percebeu o quanto o Coritiba era importante pra mim.Ela viu que meu coração estava em pedaços. De repente, não mais que de repente, ela segurou-me pelos ombros, olhou bem nos meus olhos e disse:
- Cheiroso, meu amor. Se você quiser, eu acho que posso dar uma ajuda para o seu Coritiba vencer o Colorado e ficar com o título desse campeonato.
Então arrisquei perguntar:
- E você poderia me dizer como iria conseguir fazer isso? Na verdade eu não levei o papo dela muito a sério, mas confesso que fiquei curioso.
- Primeiro você tem que me prometer que não vai ficar bravo comigo e que não vai contar pra ninguém o que eu vou te dizer.
- Tá, tá. Eu prometo. Eu prometo. Fala logo, mulher!
- Bem, eu posso fazer um trabalho e amarrar as pernas dos jogadores do Colorado e facilitar a vida dos jogadores do Coritiba.
- Trabalho? Você quer dizer macumba? Saravá?
- Não. Magia mesmo. Eu sou uma bruxa. De verdade.
- E não é a mesma coisa?
- Claro que não. Posso fazer um trabalho para evitar que o Colorado perca não só esse, mas todos os campeonatos que disputar em sua história.
Meus olhos brilharam.
- E dá pra fazer isso com o A. Paranaense também?
- Claro.
Comecei a esfregar as mãos. Não sei porque, mas acreditei que aquilo poderia dar certo.Pensei um pouco e mandei, de sopetão:
- O que é que eu preciso comprar? Sapo, galinha preta, essas coisas?
- Não. Preciso apenas de uma camisa do Colorado, o nome completo do clube e os nomes dos jogadores que vão disputar o quadrangular que você falou.O resto você deixa comigo.
- Vixe. Está mais fácil do que pensava. Se isso der certo, eu juro que me caso com você e lá fui eu atrás dos ingredientes necessários para a minha macumba, quer dizer, bruxaria.
A camisa do Colorado eu consegui num camelô em frente ao Estádio Durival de Britto e Silva. O nome do clube eu já sabia de cabeça e os nomes dos jogadores eu consegui com uma visita à recém-inaugurada sede da Federação Paranaense de Futebol. Disse que precisava dos nomes porque estava pensando em me casar com Inez e precisava escolher um nome para nosso primeiro filho. Disse que torcia muito para o Colorado e queria que o bacuri tivesse o nome de um dos craques do Boca Negra.Na hora do apuro a gente inventa cada besteira.
Quando voltei com as encomendas para a casa do meu amorzinho, deparei-me com um clima todo zen no ambiente. Havia 11 bonecos em cima da mesa, velas de tudo que é cor acesas e as luzes estavam apagadas. Também tinha incenso aceso e a Inez estava muito séria.
- Santinha. Aqui está tudo que você me pediu.
- Shhhhhhhhhhhhhhh. Fale baixo. Não pode quebrar a corrente. Escreva o nome de cada um dos jogadores nas costas de cada boneco.Escreva o nome completo do clube nesse papel e deixe tudo aí em cima da mesa.
Eu confesso que senti um tiquinho assim de medo daquele clima todo, mas não ia dar pra trás depois de pagar quinzão numa camisa fajuta do Colorado né? Segue em frente com a macumba!
Ela ficou lá concentrada um tempo, depois amarrou as pernas dos bonecos (cada um com o nome nas costas), embrulhou todos eles e o papel com o nome do clube na camisa do Colorado e deixou tudo escondido debaixo de um sofá velho. E ainda me perguntou se eu queria que ela usasse as agulhas.Nem me atrevi a perguntar pra que as agulhas serviriam. Imaginei que não seria coisa boa e resolvi livrar os craques do Colorado dessa fria. Depois dizem que eu não sou bonzinho, que não tenho um coração enorme...
Veio, então, o famoso quadrangular que iria apontar o grande campeão de 1979.Eu, mesmo com meu time não sendo a oitava maravilha do mundo, já havia encomendado três quilos de contra-filé e mais três quilos de lingüiça Toscana pra assar. Também comprei (fiado) uma caixa de cerveja para encher a cara e comemorar o bicampeonato do meu Verdão. Na primeira rodada, Colorado e A. Paranaense empataram em 0x0 e o Coxa venceu o Grêmio de Maringá por 1x0 lá dentro do Willie Davis. Eu só pensava cá comigo: “Eita bruxariazinha danada de boa. Esse título tá no papo!”
Na segunda rodada, o Grêmio de Maringá venceu o Colorado por 1x0 e nós empatamos com o time lá de baixo em 1x1 (me nego a dizer o nome deles!). Aquela vitória do Maringá era a prova que eu precisava para ter certeza que o feitiço havia mesmo acabado com o futebol do Boca Negra, o grande time do campeonato até então. Me empolguei e encomendei mais cinco quilos de lingüiça e convidei uns amigos para a comemoração do título, mesmo faltando dez dias e quatro rodadas para o término do campeonato.
Na terceira rodada do primeiro turno, Colorado e Coritiba voltariam a se enfrentar no Durival de Brito.Comprei outra bandeira e chamei Inez para ver o massacre. Foi a primeira vez que fui pro estádio com a certeza de que o Coritiba iria ganhar um clássico.Que sensação de paz interior, de felicidade extrema. Assim que o árbitro apitou o final da partida, eu fiquei por dois longos minutos olhando para o placar que dizia que o Colorado havia vencido novamente por 2x0. Inez, ao meu lado, não sabia onde enfiar a cara. Fui embora sem dizer uma palavra sequer e sem ao menos tocar sua mão durante a cansativa viagem de ônibus sentido Vila Hauer. Eu me sentia traído. Como pude ser tão burro a ponto de acreditar numa bobagem daquelas? Se com as pernas amarradas, os caras do Colorado correram daquele jeito e enfiaram 2x0, imagine o que iriam fazer se estivessem com as pernas soltas? Vi o sonho do bicampeonato ir por água abaixo. Ao chegarmos na Vila Hauer, olhei bem nos olhos da Inez, respirei fundo, e pedi um tempo na nossa relação:
- Acho que não temos clima para ficarmos juntos.Estou com a nítida sensação que você me fez de trouxa e, enquanto isso não passar, vai ser difícil olhar pra você com carinho e virei as costas sem sequer beijá-la. A tristeza que eu sentia era tão grande que foi impossível conter a lágrima que caiu do olho esquerdo. Começou a tocar “Easy”, dos Comodores, na minha mente. Enquanto eu caminhava, ouvi a Inez dizer, não muito alto, nem muito baixo:
- Pode ser que o feitiço sirva apenas para o resultado final do campeona... ela nem chegou a terminar a frase.
No returno, teríamos que vencer todos os jogos, já que o Colorado havia entrado no quadrangular com dois pontos extras por ter vencido os dois primeiros turnos da competição. O Coxa tinha um ponto extra por ter vencido o octogonal (eita fórmula de disputa lazarenta essa também!).
Na primeira rodada, passamos fácil pelo Grêmio de Maringá e um empate entre Colorado e o time lá de baixo foi mais do que suficiente para colocar o Coxa novamente na briga pelo título.Bastava vencer os dois clássicos e pronto: a taça seria nossa.Senti uma vontade enorme de ligar para a Inez.Mas como sou um cara muito orgulhoso, não liguei. Quase morri de saudade, mas fui forte.
Veio a segunda rodada. Passamos fácil pelo time lá de baixo. Goleada de 1x0, fora o baile. Só que o Colorado venceu o Grêmio de Maringá por 2x1 e o título seria decidido no jogo da última rodada, justamente entre o Coxa e o Colorado. Eu já havia perdido a conta de quantas vezes perdemos pra eles naquele campeonato e confesso que estava morrendo de medo. Foram dias de angústia porque, além do temor de perder o título em pleno Couto Pereira, ainda tinha a saudade da Inez corroendo meu peito.
No sábado, um dia antes da grande decisão, joguei meu orgulho fora e fui à casa da minha amada para convidá-la a ir ao Couto Pereira; que ela estava perdoada por ter me enganado com aquelas bobagens de feitiçaria e que nós deveríamos viver nosso amor intensamente.Ela, ao me ver em frente ao portão, veio correndo em câmera lenta na minha direção, com os braços abertos. Mais uma vez, tocou “Easy”, dos Comodores, na minha cabeça.
Trocamos um longo beijo e fomos para dentro de casa para matarmos a saudade por completo. Depois que terminamos de fazer o que tinha que ser feito, perguntei, em tom de brincadeira, se ela tinha desamarrado as pernas dos bonecos. Ela disse que não e que tinha certeza que, se fizesse isso, o Colorado seria o campeão. Eu não quis discutir e mudei de assunto, apalpando-lhe as nádegas e partindo para o segundo tempo. Aquele foi um dos poucos instantes da minha vida em que eu dei prioridade a outra coisa que não foi o Coritiba.De bobo, também, eu só tenho a cara e o jeito de falar.
Como o confronto era inevitável, peguei minha bandeira recém-comprada para substituir aquela que foi roubada, tomei umas três Brahmas bem geladas, rezei uns quinze Pai Nosso, peguei uns trocados para o amendoim, me abracei a Inez e me mandei pro Couto Pereira, já com o coração preparado para o pior. Se fosse pra perder, que perdesse de pouco pelo menos.
Nem foi preciso muito tempo de bola rolando para eu ver a viola em cacos. Logo aos quinze minutos do primeiro tempo, o tal de Dulcídio Vanderlei Boschilla expulsou o atacante Santos. Até hoje ele não explicou porque o jogador do Coritiba foi mais cedo pro chuveiro (e bota cedo nisso!). Se nos jogos passados, jogando onze contra onze, tomamos de 2x0, hoje vai ser uma sacola. Não quero nem ver.
Olhei para a Inez e ela deve ter lido meu pensamento:
- Você é uma vergonha para o feiticeirismo nacional!!!
- E pensei: “O que será que eu vou fazer com aquele monte de lingüiça que tá lá em casa?” E você que está lendo é muito engraçadinho também...
Porém, ao contrário do que eu imaginava, o Coritiba encarou o Boca Negra de igual para igual e abriu o placar com um gol do zagueiro Duílio. Não quero ser bocudo, mas parecia que os jogadores do Colorado estavam com as pernas presas. Quando vi a rede balançando, dei um beijo na careca de um senhor que estava à minha frente, abracei uma garota que estava ao meu lado e recebi um olhar de reprovação da minha Inez, que naquela altura do jogo, já era a maior bruxa do sistema solar. Com um a menos no gramado e ganhando de um time mais forte? Será que aquele feitiço estava fazendo efeito?
Pensei que o final da partida seria um verdadeiro drama, com o Colorado atacando e o Coritiba se defendendo, mas quase tive um treco quando o Aladim fez a jogada pela esquerda e cruzou na medida para Luis Freire, que chegou pelo meio da área e fuzilou o goleiro Wilson: 2x0 e ninguém mais tirava a taça da sala de troféus do Coritiba. Incrível as coisas que o futebol é capaz de fazer com um ser humano. Era como se eu tivesse tirado um peso das costas. Eu sorria pra qualquer um, eu abraçava todos que apareciam à minha frente e minha vontade era beber toda a cerveja do mundo, tamanha era minha felicidade.
- Nem sei porque está comemorando tanto. Eu já sabia que tudo isso ia acontecer_ disse Inez, com ar de deboche.
Pra falar a verdade, eu ainda não sei se aquele feitiço da Inez ajudou o Coritiba a vencer o Colorado ou não. Por via das dúvidas, cumpri o que prometi e vivo até hoje com ela. Casamos no civil e no religioso, com tudo que temos direito. Quando completamos um ano de casamento, dei a ela uma placa com os seguintes dizeres:
“Nunca acreditei em bruxas. Mas que elas existem, ah existem”.
FIM
Elenco alviverde que foi campeão estadual de 79:
Mazaropi, Eduardo, Duílio, Gardel, Serginho, Almir, De Rosis, Santos, Valtinho, Luiz Freire, Freitas, Aladim, Chico Paulino, Gilson Paulino, Borjão, Bráulio, Neinha, Dionísio, Marciano, Valdair, Cláudio Marques, Norival, Rodinaldo e Sartori.
Na próxima segunda-feira, uma crônica mais do que especial sobre o Campeonato Brasileiro de 1985. Aguardem!
Para que a minha glória a ti cante louvores, e não se cale. Senhor, meu Deus, eu te louvarei para sempre. (Salmos 30:12)